As aprendizagens escolares na educação infantil
Elvira Souza LimaA criança pode formar comportamentos na educação infantil que servirão de base às atividades de estudo posteriores
A criança pequena realiza durante o seu desenvolvimento várias atividades de natureza biológica e cultural que criam, de forma natural, suportes para as aprendizagens escolares que acontecerão a partir do ensino nas séries que constituem a educação básica (Lima, 2004, 2007, 2008). Assim, falar em aprendizagens na educação infantil significa falar em desenvolvimento: o desenvolvimento adequado na infância é que possibilitará muitas aprendizagens escolares posteriores. As práticas culturais da infância promovem o desenvolvimento fundamental desse período, como a função simbólica, a percepção, a atenção e a perícia dos movimentos amplos e dos movimentos mais circunscritos das mãos, dos pulsos e dos dedos, estes últimos necessários para escrever.
Nas práticas culturais estão incluídas as brincadeiras infantis, os rituais, as festividades coletivas, a tradição oral de uma cultura. Ao realizar as práticas culturais, a criança também se apropria de objetos culturais, incluindo os instrumentos musicais, os instrumentos de desenho e os de escrita, entre outros. A criança realiza explorações com a tridimensionalidade, manipulando elementos da natureza, materiais diversos, objetos com formas geométricas e brinquedos. Essas explorações são de grande importância para o desenvolvimento posterior do pensamento geométrico e do pensamento matemático.
Esse período é marcado por um desenvolvimento de modos de fazer, de metodologias, de passo a passo, de sequências de ações de movimento executadas pelo corpo que acabam por criar memórias de procedimento. Em outras palavras, essas atividades constituem o método da metodologia de estudo: a criança pode formar comportamentos na educação infantil que servirão de base à formação de atividades de estudo posteriores.
Podemos considerar duas dimensões em que o desenvolvimento dá suporte para as aprendizagens escolares: a dimensão da informação propriamente dita (conhecimento) e a dimensão das atividades necessárias para se apropriar das informações (atividades de estudo), transformando essas informações em novas memórias ou na ampliação de memórias já existentes. Seria o mesmo que dizer que o conhecimento e o estudo levam a novas redes neuronais, criando novas memórias e ampliando as já existentes.
Observar e registrar são componentes básicos do fazer científico. Observar as formas e as cores na natureza e desenhá-las enquanto se está observando, por exemplo, é uma atividade que utiliza a estratégia de desenvolvimento do desenho, que é própria da infância. Acompanhar o crescimento de sementes que se transformam em plantas, as quais, por sua vez, crescem com o solo, a água e a luz, é outro exemplo de trabalho com o conhecimento científico de maneira adequada ao período de desenvolvimento por que a criança está passando. Desenhar em momentos diferentes e sucessivos o crescimento da planta − e poder olhar a progressão desse crescimento nos desenhos realizados − faz parte da formação do comportamento investigativo.
Artes e ciências integram-se na formação da criança pequena
As artes são atividades geralmente realizadas por adultos. No entanto, essas formas de atividade humana são comportamentos inerentes à infância - as artes constituem estratégias importantes de que a criança dispõe para aprender e desenvolver-se. Nas atividades próprias da infância, temos a música, o desenho, a pintura, a dança e o drama. Cada um desses domínios subdivide-se ou é formado por vários componentes.
Tomemos a música como exemplo. Ela envolve ritmo e melodia, é realizada por instrumentos musicais e/ou pela voz humana acompanhada ou não de instrumentos musicais. Com a voz se canta à capela, ou seja, sem acompanhamento de instrumentos musicais, se faz vocalização, canta-se melodia com e sem letra. Canta-se sozinho, em dupla, em jogral ou em coral. Canta-se na brincadeira infantil, nas festas e tradições culturais. A música pode acompanhar várias outras atividades humanas, inclusive durante certas atividades de trabalho.
A música constitui a formação do ser humano e, nos primeiros anos da infância, a criança utiliza os sons, a duração dos sons, o ritmo para a organização de seu movimento e domínio dos movimentos do corpo no espaço. Com a prática musical, a criança também lida com divisão e fração: a duração de cada nota e a composição de um compasso ou de uma frase musical tem como base a matemática. Como a escrita musical utiliza valores numéricos, ao aprender a ler e a escrever música, a criança aprende simultaneamente a lidar com as quantidades e com a representação simbólica dessas quantidades.
Educação dos sentidos
Ouvir, olhar, tocar são ações resultantes do funcionamento dos órgãos dos sentidos, as quais se formam com as bases biológicas da espécie e a partir das experiências culturais, das vivências que cada um de nós tem nos contextos dos quais participamos. A música, o desenho, o teatro, a escultura e a dança são atividades que educam os sentidos e a atenção. As artes desenvolvem a sensibilidade da pessoa e colaboram na formação de comportamentos de "prestar atenção". A realização de atividades artísticas demanda, por si só, a concentração: sem concentração, não há o funcionamento integrado do movimento com a percepção. O conhecimento científico depende, para sua apropriação, de atividades que começam justamente pela atenção e pela percepção. A ciência se faz com observação dirigida e registro.
A prática no campo das artes tem em comum com as ciências os princípios da percepção e da atenção para a criação de memórias. Tanto as artes quanto as ciências dependem da mobilização da imaginação, que acontece com a utilização dos acervos presentes na memória de cada um. A memória de trabalho utiliza esses acervos, articulados com os elementos que são trazidos pelo contexto a um determinado momento. A escola é um desses contextos. Portanto, a educação dos sentidos é parte integrante da percepção e da atenção e da formação das memórias necessárias para aprendermos os conhecimentos escolares.
Pensando em um currículo para a educação infantil
Partindo dessas realidades do desenvolvimento humano, podemos pensar no conceito de currículo para a educação infantil, incluindo também as crianças de 6 anos que ora chegam ao ensino fundamental de 9 anos. Podemos pensar em um componente curricular que contemple o movimento: ele é sempre importante para o ser humano, mas na infância assume um papel essencial de formação integral, de suporte para a memória, de meio expressivo e de comunicação. Misturar, mexer, empilhar, desmontar, montar, correr, rodar, pular, dançar e saltar são algumas das possibilidades de organização do movimento de que a criança pequena dispõe. Podemos pensar em um componente curricular para a formação da infância explorando a natureza, os movimentos da natureza, começando pelos astros e pela vida de plantas e animais.
A criança encanta-se com os movimentos da natureza: o ar, que ela não vê, desloca-se. Quando ele se desloca, a criança pode ver o que o ar provoca: impulsiona a pipa, faz voar a folha de papel, carrega folhas que também fazem piruetas. Simular o movimento do vento com o próprio corpo, desenhar objetos voando levados pelo vento são meios de construir imagens mentais (com movimento) que farão parte do acervo de memórias das crianças.
Os astros brilham e movem-se − um aspecto interessante está na percepção do movimento. A lua move-se do horizonte para a abóboda celeste: na perspectiva, ela muda de tamanho. Podemos pensar em outro componente curricular que trabalhe com as figuras geométricas planas e sólidas, com quantidades, com composições tridimensionais feitas de materiais diversos (pedaços de madeira, sucata, papelão, massinha, argila e elementos da natureza, como pedras, gravetos, conchas, sementes não-comestíveis, etc.).
A escrita e outros sistemas simbólicos devem fazer parte do currículo como produtos culturais. Assim, brincar com as letras utilizando o tato e o movimento das mãos ajuda a formar a memória das letras. Dramatizar, ouvir histórias, escutar música são atividades que colaboram para a formação do leitor e dão suporte para as atividades que futuramente levarão à apropriação da escrita.
A curiosidade infantil: fazer perguntas,
responder perguntas
A curiosidade infantil pode ser a mola propulsora das aprendizagens escolares futuras. A curiosidade promove o estado de alerta, que é o primeiro nível do comportamento de atenção, e a partir dela é possível formar acervos de memória e desenvolver a imaginação infantil. Ao se interessar por alguma coisa e juntar a esse interesse um componente de indagação, a criança tem ainda a possibilidade de mobilizar a imaginação. A curiosidade infantil manifesta-se tanto em fatos da vida cotidiana quanto em relação a eventos menos frequentes ou inusitados. Ao aproveitá-la, os adultos podem propor uma série de situações que possibilitam a exploração de objetos e eventos sem, contudo, limitar a ação da criança.
A formulação de perguntas é uma atividade que ajuda a criar a organização posterior do pensamento da criança. Perguntar implica organizar informações em algum tipo de estrutura, mesmo que muito simples. A pergunta requer a utilização de algum critério que norteia a relação do significado de uma coisa para obter outros significados ou simplesmente para ampliar a compreensão anterior. Ao formular uma pergunta, a criança elabora o que percebe e as relações que estabelece entre os elementos percebidos.
Estes são alguns dos eixos curriculares que podemos pensar para a educação infantil. Eles envolvem o exercício da função simbólica, o desenvolvimento do movimento, a educação dos sentidos, o desenvolvimento da memória e da imaginação. Além disso, permitem o trabalho com o conteúdo, mas como elementos iniciadores de processos de desenvolvimento da criança. Assim, na educação da criança pequena, os conhecimentos são essenciais na formação humana e ajudam a forjar comportamentos dos quais ela dependerá em sua vida futura de estudante para ter autonomia em seus processos de aprendizagem na escola.
Elvira Souza Lima é antropóloga, psicóloga
e consultora internacional de educação.
elvirasouzalima@gmail.com
Nas práticas culturais estão incluídas as brincadeiras infantis, os rituais, as festividades coletivas, a tradição oral de uma cultura. Ao realizar as práticas culturais, a criança também se apropria de objetos culturais, incluindo os instrumentos musicais, os instrumentos de desenho e os de escrita, entre outros. A criança realiza explorações com a tridimensionalidade, manipulando elementos da natureza, materiais diversos, objetos com formas geométricas e brinquedos. Essas explorações são de grande importância para o desenvolvimento posterior do pensamento geométrico e do pensamento matemático.
Esse período é marcado por um desenvolvimento de modos de fazer, de metodologias, de passo a passo, de sequências de ações de movimento executadas pelo corpo que acabam por criar memórias de procedimento. Em outras palavras, essas atividades constituem o método da metodologia de estudo: a criança pode formar comportamentos na educação infantil que servirão de base à formação de atividades de estudo posteriores.
Podemos considerar duas dimensões em que o desenvolvimento dá suporte para as aprendizagens escolares: a dimensão da informação propriamente dita (conhecimento) e a dimensão das atividades necessárias para se apropriar das informações (atividades de estudo), transformando essas informações em novas memórias ou na ampliação de memórias já existentes. Seria o mesmo que dizer que o conhecimento e o estudo levam a novas redes neuronais, criando novas memórias e ampliando as já existentes.
Observar e registrar são componentes básicos do fazer científico. Observar as formas e as cores na natureza e desenhá-las enquanto se está observando, por exemplo, é uma atividade que utiliza a estratégia de desenvolvimento do desenho, que é própria da infância. Acompanhar o crescimento de sementes que se transformam em plantas, as quais, por sua vez, crescem com o solo, a água e a luz, é outro exemplo de trabalho com o conhecimento científico de maneira adequada ao período de desenvolvimento por que a criança está passando. Desenhar em momentos diferentes e sucessivos o crescimento da planta − e poder olhar a progressão desse crescimento nos desenhos realizados − faz parte da formação do comportamento investigativo.
Artes e ciências integram-se na formação da criança pequena
As artes são atividades geralmente realizadas por adultos. No entanto, essas formas de atividade humana são comportamentos inerentes à infância - as artes constituem estratégias importantes de que a criança dispõe para aprender e desenvolver-se. Nas atividades próprias da infância, temos a música, o desenho, a pintura, a dança e o drama. Cada um desses domínios subdivide-se ou é formado por vários componentes.
Tomemos a música como exemplo. Ela envolve ritmo e melodia, é realizada por instrumentos musicais e/ou pela voz humana acompanhada ou não de instrumentos musicais. Com a voz se canta à capela, ou seja, sem acompanhamento de instrumentos musicais, se faz vocalização, canta-se melodia com e sem letra. Canta-se sozinho, em dupla, em jogral ou em coral. Canta-se na brincadeira infantil, nas festas e tradições culturais. A música pode acompanhar várias outras atividades humanas, inclusive durante certas atividades de trabalho.
A música constitui a formação do ser humano e, nos primeiros anos da infância, a criança utiliza os sons, a duração dos sons, o ritmo para a organização de seu movimento e domínio dos movimentos do corpo no espaço. Com a prática musical, a criança também lida com divisão e fração: a duração de cada nota e a composição de um compasso ou de uma frase musical tem como base a matemática. Como a escrita musical utiliza valores numéricos, ao aprender a ler e a escrever música, a criança aprende simultaneamente a lidar com as quantidades e com a representação simbólica dessas quantidades.
Educação dos sentidos
Ouvir, olhar, tocar são ações resultantes do funcionamento dos órgãos dos sentidos, as quais se formam com as bases biológicas da espécie e a partir das experiências culturais, das vivências que cada um de nós tem nos contextos dos quais participamos. A música, o desenho, o teatro, a escultura e a dança são atividades que educam os sentidos e a atenção. As artes desenvolvem a sensibilidade da pessoa e colaboram na formação de comportamentos de "prestar atenção". A realização de atividades artísticas demanda, por si só, a concentração: sem concentração, não há o funcionamento integrado do movimento com a percepção. O conhecimento científico depende, para sua apropriação, de atividades que começam justamente pela atenção e pela percepção. A ciência se faz com observação dirigida e registro.
A prática no campo das artes tem em comum com as ciências os princípios da percepção e da atenção para a criação de memórias. Tanto as artes quanto as ciências dependem da mobilização da imaginação, que acontece com a utilização dos acervos presentes na memória de cada um. A memória de trabalho utiliza esses acervos, articulados com os elementos que são trazidos pelo contexto a um determinado momento. A escola é um desses contextos. Portanto, a educação dos sentidos é parte integrante da percepção e da atenção e da formação das memórias necessárias para aprendermos os conhecimentos escolares.
Pensando em um currículo para a educação infantil
Partindo dessas realidades do desenvolvimento humano, podemos pensar no conceito de currículo para a educação infantil, incluindo também as crianças de 6 anos que ora chegam ao ensino fundamental de 9 anos. Podemos pensar em um componente curricular que contemple o movimento: ele é sempre importante para o ser humano, mas na infância assume um papel essencial de formação integral, de suporte para a memória, de meio expressivo e de comunicação. Misturar, mexer, empilhar, desmontar, montar, correr, rodar, pular, dançar e saltar são algumas das possibilidades de organização do movimento de que a criança pequena dispõe. Podemos pensar em um componente curricular para a formação da infância explorando a natureza, os movimentos da natureza, começando pelos astros e pela vida de plantas e animais.
A criança encanta-se com os movimentos da natureza: o ar, que ela não vê, desloca-se. Quando ele se desloca, a criança pode ver o que o ar provoca: impulsiona a pipa, faz voar a folha de papel, carrega folhas que também fazem piruetas. Simular o movimento do vento com o próprio corpo, desenhar objetos voando levados pelo vento são meios de construir imagens mentais (com movimento) que farão parte do acervo de memórias das crianças.
Os astros brilham e movem-se − um aspecto interessante está na percepção do movimento. A lua move-se do horizonte para a abóboda celeste: na perspectiva, ela muda de tamanho. Podemos pensar em outro componente curricular que trabalhe com as figuras geométricas planas e sólidas, com quantidades, com composições tridimensionais feitas de materiais diversos (pedaços de madeira, sucata, papelão, massinha, argila e elementos da natureza, como pedras, gravetos, conchas, sementes não-comestíveis, etc.).
A escrita e outros sistemas simbólicos devem fazer parte do currículo como produtos culturais. Assim, brincar com as letras utilizando o tato e o movimento das mãos ajuda a formar a memória das letras. Dramatizar, ouvir histórias, escutar música são atividades que colaboram para a formação do leitor e dão suporte para as atividades que futuramente levarão à apropriação da escrita.
A curiosidade infantil: fazer perguntas,
responder perguntas
A curiosidade infantil pode ser a mola propulsora das aprendizagens escolares futuras. A curiosidade promove o estado de alerta, que é o primeiro nível do comportamento de atenção, e a partir dela é possível formar acervos de memória e desenvolver a imaginação infantil. Ao se interessar por alguma coisa e juntar a esse interesse um componente de indagação, a criança tem ainda a possibilidade de mobilizar a imaginação. A curiosidade infantil manifesta-se tanto em fatos da vida cotidiana quanto em relação a eventos menos frequentes ou inusitados. Ao aproveitá-la, os adultos podem propor uma série de situações que possibilitam a exploração de objetos e eventos sem, contudo, limitar a ação da criança.
A formulação de perguntas é uma atividade que ajuda a criar a organização posterior do pensamento da criança. Perguntar implica organizar informações em algum tipo de estrutura, mesmo que muito simples. A pergunta requer a utilização de algum critério que norteia a relação do significado de uma coisa para obter outros significados ou simplesmente para ampliar a compreensão anterior. Ao formular uma pergunta, a criança elabora o que percebe e as relações que estabelece entre os elementos percebidos.
Estes são alguns dos eixos curriculares que podemos pensar para a educação infantil. Eles envolvem o exercício da função simbólica, o desenvolvimento do movimento, a educação dos sentidos, o desenvolvimento da memória e da imaginação. Além disso, permitem o trabalho com o conteúdo, mas como elementos iniciadores de processos de desenvolvimento da criança. Assim, na educação da criança pequena, os conhecimentos são essenciais na formação humana e ajudam a forjar comportamentos dos quais ela dependerá em sua vida futura de estudante para ter autonomia em seus processos de aprendizagem na escola.
Elvira Souza Lima é antropóloga, psicóloga
e consultora internacional de educação.
elvirasouzalima@gmail.com
REFERÊNCIAS
LIMA, E.S. A criança pequena e suas linguagens. São Paulo: Editora Sobradinho, 2004. ____. Brincar para quê? São Paulo: Inter Alia Comunicação e Cultura, 2007 ____. Ler se aprende com cultura. Série de cinco DVDs. Produção: NaNa Arts & Image. Distribuição Inter Alia Comunicação e Cultura. São Paulo, 2008.
Matéria publicada na Revista Pátio Ano VII - Nº 19 - Para que serve a educação infantil? - Março
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