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sábado, 25 de dezembro de 2010

O limite tem lugar essencial na formação Infantil.

Entrevista

Celso Gutfreind

O limite tem um lugar essencial na formação infantil, pois permite que as crianças aprendam a lidar com a diferença, a assumir a si próprias e suas limitações e a acolher aos outros. É assim que aprendemos uma questão essencial para nossa época: não somos onipotentes. Essa é a visão de Celso Gutfreind, psiquiatra da infância e da adolescência e escritor. Como escritor, ele tem diversos livros publicados, entre poesia e histórias infantis, com textos traduzidos para espanhol, francês e inglês. Como médico, especializou-se em Medicina Geral Comunitária, Psiquiatria e Psiquiatria Infantil. Realizou na França mestrado e doutorado em Psicologia Clínica e pós-doutorado em Psiquiatria Infantil no grupo hospitalar Pitié-Salpetrière da Universidade Paris VI. Atualmente, Celso Gutfreind é professor da Faculdade de Medicina e do mestrado em Saúde Coletiva da ULBRA e da Fundação Universitária Mário Martins. Nesta entrevista, ele fala sobre a difícil tarefa de formar a noção de limite no universo infantil numa sociedade em que o princípio do prazer exacerbado não conhece limites. Sonia Montaño

O que de fato acontece nos primeiros seis anos de vida?

Essa etapa é decisiva do ponto de vista físico, neurológico e emocional. É nessa idade que se desenvolvem o cérebro, o coração, os rins, o sistema endócrino, a capacidade de sentir, de criar, de inventar, de subjetivar, de abstrair. Pontos fundamentais na capacidade de agir e pensar.

Quando a noção de limites começa a aparecer na vida da criança?

Há 30 anos, seria possível dizer: quando ela deixa de ser bebê, em torno de 2, 3 anos. Atualmente, com o avanço do conhecimento sobre os bebês, responder a tal pergunta tornou-se mais difícil. No entanto, a partir das observações das interações precoces entre pais e bebês, podemos pensar que ainda no primeiro semestre de vida, ou seja, no bebezinho, há indícios de que processos em busca de autonomia e diferenciação já estão sendo construídos, havendo, portanto, o que podemos considerar esboços de uma noção de limites. O fato de que uma noção absoluta não existe nem na vida adulta permite-nos confirmar que essa hipótese faz algum sentido.

Nosso contexto cultural apresenta dificuldades específicas à noção de limite?

Aspectos culturais influenciam em tudo. Uma cultura que estimula o consumo de carne demais ou que estimula mulheres magras demais influencia tanto a saúde quanto a vida emocional das pessoas. Os aspectos culturais sempre são positivos e negativos. A noção de limites envolve o longo e sempre inacabado caminho do princípio do prazer ao princípio de realidade. O ponto mais importante de uma sociedade narcicista como a nossa é que ela tem menos limites. O princípio de prazer leva a buscar tudo o que se quer e o de realidade leva a aceitar que há limites na ambição, no ganho, no combate da dor. As pessoas costumam medicar-se para qualquer dor física ou emocional, por exemplo. É nesse contexto que se dá a incapacidade de criar limites para as crianças.

Como ocorre o processo de assimilação do limite por parte da criança?

Ocorre no contexto de uma relação com o adulto. É no fundo desse encontro, com todas as qualidades e defeitos, que a noção vai sendo transmitida, assimilada, transformada, adquirida. Essas noções podem ser aprofundadas se observamos que o encontro de um bebê com um adulto tem aspectos concretos ou reais, afetivos, fantasmáticos e culturais.

Aspectos fantasmáticos?

O amor é difícil, como de resto tudo na vida. E, com frequência, nas relações pais e filhos, essa dificuldade aparece no aspecto fantasmático da interação. Ele engloba tudo aquilo que não pode ser compreendido, nomeado na história dos próprios pais, especialmente na relação com os seus próprios pais e, mais especialmente ainda, na forma como viveram, quando crianças, os conflitos referentes aos limites. Assim, é função dos pais tentar, intuitiva ou analiticamente, estar o mais em dia possível com a sua própria história, varrendo (nomeando) o máximo de fantasmas para que estes não atrapalhem a construção dos processos mencionados.

A qualidade da interação criança-adulto é, então, essencial na formação de limites?

Quanto mais qualificada for a interação entre pais e bebês em termos afetivos, mais esse bebê será capaz de adquirir tais noções, porque se sentirá contido, no sentido psicanalítico do termo e, de certa forma, apaziguado por se sentir desejado, reconhecido, respeitado, ou seja, amado, se concordarmos que o amor pode ser isso. Podemos resumir que o primeiro papel do adulto, nesse campo dos limites, é cuidar bem, isto é, amar. O papel dos adultos, enfim, é fundamental e circula entre as capacidades de amar e conhecer a si próprios.

Isso também vale para o professor de educação infantil?

O papel do professor e da escola também é importantíssimo ao menos em dois sentidos. Primeiro, é preciso reconhecer que tudo o que foi respondido até agora fica muito bonito quando colocado em palavras bem pensadas. Na prática, porém, seguidamente é feio, difícil e até impossível, como um dia reconheceu o próprio Freud. Essas relações amorosas são também minadas de ódios, violências fundamentais e derivadas, presentes nos bebês e nos bebês eternamente presentes nos pais. É com todos esses conteúdos em chamas que se defrontam a escola e o professor ao receber crianças de zero a seis anos e suas famílias.

Qual seria então a principal tarefa a ser realizada?

Na minha opinião, há um papel da escola e dos professores no sentido de constituir uma matriz de apoio, de contenção, abrindo um espaço de compreensão, escuta, acolhida e até mesmo de reforço narcísico desses pais no cuidado de não criticá-los. É claro que isso não é fácil para ninguém, pois cuidar não é fácil, e o encontro com todos esses afetos em ebulição também há de pôr em ebulição a vida afetiva da escola e do professor. Cabe então à escola criar e abrir espaços para acolher os professores nessa difícil e sagrada tarefa de acolher. Escola e professores, enfim, legitimam pais, tentando reforçá-los.

E o que fazer quando os pais delegam a educação à escola, como se fosse tarefa exclusiva da instituição e não deles?

Por mais que professores não possam nem devam substituir os pais, eles também, no aqui e agora das interações, viverão diversas oportunidades em que serão legítimos representantes das figuras e funções parentais. Também por isso é muito difícil para eles e, ao mesmo tempo, essa dificuldade engrandece o seu papel, já que, a partir de situações cotidianas e como representantes (na transferência) desses pais, poderão oferecer vivências mais ou menos qualificadas em todos os aspectos do desenvolvimento, incluindo a noção de limites. Um professor que ofereça, firme e ternamente, limites a uma criança pode proporcionar algo que lhe falta em casa na relação com mãe e pai, mas que ela agora consegue obter, em uma espécie de transferência estruturante.

Como os professores devem lidar com uma certa "terceirização" da educação?

Vejo nessa terceirização mais um papel para a escola, que consiste em respeitosamente não aceitá-la. Cada um que encontre o seu jeito - e estou sempre, estabanadamente, em busca do meu, toda vez que uma família tenta me terceirizar a educação de seu filho. Não aceito, porque não posso, porque não tenho esse poder e muito me tratei e me trato para lidar com esses limites.

Como repercutem na criança as divergências entre os pais ou entre pais e professores em relação aos limites?

Quase sempre haverá divergências entre pai e mãe e suas educações tão diversas, assim como entre escola e pais e suas funções ou cenários tão diversos. Estamos no mais autêntico terreno da intersubjetividade, lidando com pessoas e seus encontros. Na minha opinião, o problema não está na divergência, que é inevitável, esperada, humana. A questão parece situar-se na maneira como tal divergência é vivida e elaborada. Nesse sentido, poder divergir é autêntico, igualmente esperado e saudável, desde que seja acompanhado da capacidade de aceitar a diferença, reconhecê-la, "baixar a bola" da onipotência, podendo reconhecer que não somos donos de nenhuma verdade e que, a rigor ou sem rigor, essas verdades absolutas não existem.

Essas diferenças podem então ajudar na experiência do limite?

A vida é feita de conflitos, discórdias, e apagá-los seria falso. Por outro lado, transmitir uma capacidade de viver respeitosamente no meio disso, aproveitando a riqueza dessa verdade, é algo fundamental, a meu ver, nas relações entre adultos e crianças. Portanto, quando há discordância entre pais e professores, não se trata de dar razão a um ou outro, e sim de poder conversar, trocar ideias, aumentando a escuta, a tolerância, o respeito e a aceitação de que é possível ou mesmo inevitável conviver com as diferenças.

A escola deve ajudar as crianças também
a transgredir limites?


É isso que defendem, por exemplo, indireta e metaforicamente, os artistas autênticos. Acho isso muito interessante e assino embaixo em cada uma das rebeldias que cometo ou incito. É preciso muito cuidado em não confundir a aquisição da noção de limites, vista aqui mais como uma aceitação da realidade e a necessidade de abdicar de certos desejos (ou da forma de vivê-los), com submissão no sentido mais negativo da palavra educar. Sem dúvida, isso é muito mais difícil, dá muito mais trabalho, confronta-nos muito mais com nossa pequenez, nossas frustrações, nossos limites e nossa própria história. Talvez seja por isso que tanta gente, nas casas, nas escolas e nos consultórios, prefira confundir essas noções, usando em vão o nome de dar limites para abafar liberdades.

Educação que se preze é educação
para a transgressão?


Educação, terapia e psicanálise que se prezem devem ser libertárias. Devem também engendrar bagunças, questionamentos - e nada pode significar um resultado melhor do que quando um filho ou um aluno questiona os professores ou os pais.

Em relação à sexualidade, muitos professores ficam inseguros sobre o que as crianças podem
e o que não podem fazer em relação à descoberta do próprio corpo e o corpo dos seus pares?


Para agir, é preciso antes escutar o outro, o que ele está me dizendo e para a sua família a partir de sua conduta. Para escutar o outro, é preciso escutar a si mesmo. Enfim, voltamos a Sócrates. Infelizmente, ainda não evoluímos o suficiente no terreno da sexualidade e transitamos num terreno ainda familiar a Foucault ou Freud e numa cultura de repressão sexual. É preciso escutar isso, escutar-se e pensar que tudo pode e deve ser falado até para evitar que tudo seja feito.

Em que sentido não evoluímos na abordagem
da sexualidade?


A psicanálise infantil nasceu há 100 anos, com Freud e o pequeno Hans, uma criança com fobia devido à dificuldade que seus pais tinham de explicar a ele de onde viera. A ideia de que a criança não tem sexo e não deve saber sobre sexualidade é ultrapassada. Por isso, costumo dizer que ainda é um tema tabu. Não pode haver assuntos proibidos para a criança. Devemos abandonar essa crença de pureza absoluta, que é uma noção distorcida sobre as crianças. Elas têm perguntas, interesses e curiosidades sobre a sexualidade. Atender a essa curiosidade ajuda a formar sua capacidade de pensar e de sentir.

Atitudes como a de tomar banho com os pais ajuda a atender essas curiosidades?

Esta é uma questão polêmica e difícil. O equilíbrio sempre ajuda. Não se deve criar tabu, em que a criança não possa tocar nem ver, pois isso a desequilibra, mas também se tem de considerar que a exposição excessiva pode ser um estímulo a mais. Quando todo mundo toma banho junto e anda pelado pela casa o tempo todo, estimula-se demais a sexualidade da criança, o que também traz suas consequências. Essa questão depende muito das culturas e da microcultura familiar, mas trata-se essencialmente de buscar uma relação equilibrada com o corpo.

A ideia de limite está fortemente ligada
ao "não", à proibição, mas há como ensinar
o limite com o "sim"?


O ser humano precisa sempre de sentido, tanto quanto precisa de comida, de água, de amor. Um bom limite realmente precisa de firmeza, porque a criança tem necessidade de aceitar a diferença. É nessa diferença de geração que ela aprende o limite, já que o adulto é quem sabe o que é melhor para a criança, mas ela deve saber por que não. Aí está uma diferença entre autoridade e autoritarismo: a firmeza deve estar junto do esclarecimento, porque também temos grande necessidade de autonomia e liberdade. O adulto não está tirando a liberdade da criança, e sim ajudando-a a ter mais autonomia. É claro que não precisa de grandes explicações, o mínimo para entender um porquê.

Vale o puxão de orelha ou a palmada para ensinar o limite?

A geração de nossos pais tinha a ideia de que uma palmada ou um puxão de orelha não só eram permitidos, como também eram corretos no processo formativo. Temos aí duas questões: a primeira é que não precisa e a segunda é que há outras formas. Não precisa porque é violência, e violência é tudo aquilo que não pode ser conversado. O ato de bater está dizendo à criança que existe algo que não pode ser conversado, pensado, dito. Embora uma palmada seja bem diferente de uma surra, emocionalmente elas se aproximam.

Em que sentido a literatura infantil pode colaborar na formação de limites?

Eu diria que é uma colaboração essencial. O encontro com a literatura infantil começa oralmente quando os pais contam histórias para os filhos. Contar histórias é interagir com o olhar, a voz, o corpo, o desejo de encontrar o outro. A literatura infantil oferece a possibilidade de melhorar a qualidade do encontro humano. Isso sem contar o que ela oferece em termos de estímulo às capacidades de pensar, sentir e, sobretudo, imaginar.

Entrevista publicada na revista Pátio Ano VIII - Nº 23 - Limites na primeira infância - Abril 2010 / Junho 2010

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