Ana Maria Mello
Como no mundo tudo é regulado por regras, é preciso ter clareza sobre quais são os limites para que a criança possa experimentar essas regras, buscando construir com autonomia sua identidade e suas possibilidades de interação com o meio em que está inserida
Começo este artigo lembrando uma boa conversa que tivemos em Ribeirão Preto (SP), alguns anos atrás, com o psicólogo Yves de La Taille, professor do Instituto de Psicologia da USP. Naquela oportunidade, estudávamos a construção da identidade na infância em formação continuada com professoras (aqui utilizarei predominantemente o gênero feminino, já que em alguns momentos só havia educadoras participando desse processo) e técnicos. Os especialistas e as famílias ali presentes queriam narrar suas experiências de cuidar e educar crianças com menos de 6 anos.
As perguntas giravam em torno do senso comum: bebês de até 2 anos podem compreender regras? Até que faixa etária é preciso estabelecer regras? Como e quando flexibilizá-las? Algumas famílias descreviam eventos, narravam acontecimentos nos quais as crianças apareciam como verdadeiros tiranos e os adultos como vítimas de seus caprichos. Também ali apareciam perguntas a respeito dos limites da família e da creche: quais as funções de cada instituição? Por que as famílias colocam poucos limites? Por que as creches não deixam claro quais são as regras? Por que vale uma regra para uma família, para uma criança, mas uma diferente para outra? Quem medeia as regras de uma instituição? E como deve ser em casa?
Lembro também que o professor Yves de La Taille pediu paciência, pois precisaria defender uma ideia oposta. Ele afirmou enfaticamente que os adultos deveriam educar não para colocar limites, e sim para ajudar as crianças a transpor limites! Os adultos presentes reagiram espantados com tal afirmação. A interjeição "oh" ecoou de tal modo, que todos nós rimos em seguida. Porém, estávamos muito interessados em debater esse tema, já que em alguns episódios relatados apareceram recados implícitos, remetidos tanto à creche quanto à família, culpabilizando as duas instituições.
Nosso convidado queria dizer que, como no mundo tudo é regulado por regras, é preciso ter clareza sobre quais são os limites para que a criança possa experimentar essas regras, às vezes com a tutela, outras vezes com a supervisão dos adultos, e outras tantas sozinha, buscando construir com autonomia sua identidade, suas possibilidades de interação com o meio em que está inserida.
Lembro-me ainda que, em diferentes oportunidades, ao organizar grupos de estudos ou orientações sobre comportamentos no cuidado e na educação coletiva de crianças, procuramos identificar nos episódios apresentados quais eram os momentos do dia a dia em que esses casos apareciam com maior frequência. Identificamos que, quanto menor a criança, maior a tensão colocada no tripé higiene, nutrição e sono. Nessa oportunidade, avaliamos também que é através desse tripé que a criança tem seus primeiros contatos com o mundo social. Sabíamos que cada ação dessa natureza estava ligada a uma rede de comunicações entre a criança e o adulto, estabelecendo uma relação interpessoal. As meias e os sapatos desaparecidos ou sujos, a conservação e a organização dos objetos trazidos de casa, o modo como nos comunicávamos entre nós e com as famílias, cada novo programa e/ou planejamento, cada organização dos tempos e espaços - tudo isso nos fornecia mais condições de provocar transposição de limites.
As professoras relatavam que, ao interagir com a criança, introduziam nessas interações suas próprias emoções, ou seja, seu estado de humor, seu ânimo e suas possibilidades emocionais de se colocar no lugar do outro e de responder às necessidades do outro. Recordo que lemos sobre a importância do contato físico, particularmente para as crianças abaixo de três anos, e refletimos ser este o meio mais seguro para se construir a intimidade emocional com os pequenos, desde que o adulto tivesse capacidade para tanto.
Identificávamos muitas vezes o adulto maduro, aquele descrito por Winnicott (1975, p. 64): "O adulto maduro, de fato, toma parte na atividade de prover. Precisamos examinar as necessidades da criança, que vão mudando à medida que esta muda da dependência para a independência". Outras tantas vezes víamos os adultos competindo e esquecendo-se da responsabilidade de mediar as interações entre as crianças.
Naquelas ocasiões, vários episódios eram lembrados pelos professores, sendo destacado que a maior parte das experiências que ocorrem nesses contatos das crianças com os adultos é impregnada de sentimentos geralmente contraditórios. Muitos adultos queriam saber por que a emoção tem tanta força de controle, por que a emoção da criança costuma entrar em cena quando algo pelo qual ela anseia lhe é dado ou negado.
Aprendi durante esses anos que negociar e renegociar regras, regulamentá-las, normalizá-las e rediscuti-las é algo continuado. Deve-se considerar que esse é um dos conteúdos do trabalho de quem cuida de crianças, particularmente em uma instituição de educação infantil. Partindo desse princípio e recorrendo a Wallon, pode-se refletir sobre a possibilidade de que a criança e o adulto aprendam noções importantes nas interações, "descobrindo que tudo no mundo, inclusive pessoas, é regulado por regras" (Werebe e Nadel, 1986, p. 47). Vimos que os adultos e as crianças estabelecem entre si o significado das coisas, dos eventos que os cercam, assim como o comportamento e a forma de ser dessa criança estão sendo continuamente atribuídos, negociados e modificados.
É comum ouvirmos nas creches queixas de pais e educadores sobre as crianças com menos de seis anos: elas não dormem enquanto os pais não se recolhem, não comem se não for só macarrão, ou não brincam se não for apenas com regras estabelecidas e modificadas por elas. Nesse confronto com diferentes parceiros, a criança vai formando seu pensamento e sua afetividade. Ao mesmo tempo, vários atos infantis são acompanhados pela ansiedade ou pelo aborrecimento, resultando em sons emocionais: choro, balbucio, suspiros, gritos, falas compulsivas. Nesses momentos, ocorre um contágio rápido, quase instantâneo, dos adultos e das outras crianças.
Durante a década de 1990, preocupados em aproximar as famílias, organizamos uma série de projetos para a formação dos educadores, que foram denominados Série Carochinha. Junto com eles estudamos, analisamos sugestões, levantamos diferenças e avaliamos. Posteriormente, escrevemos folhetos e editamos vídeos educativos sobre como está organizada cada uma dessas ações na creche, quais são suas concepções e por que são defendidas. Nesses projetos, discutimos temas como mordidas, adaptação (das crianças, das famílias e dos educadores), alimentação, controle de esfíncter, sono, sexualidade, banho e brincadeiras com água, como também limites para a infância (Rossetti-Ferreira et al., 2008).
Recorto esse fragmento da história de formação continuada do grupo da Creche Carochinha porque considero que foi um bom exercício para tratar os combinados (interações compartilhadas nas quais a fala da criança e de sua família deve ser considerada e analisada sistematicamente) entre as crianças e os adultos que resultaram em construções coletivas negociadas. Vale lembrar que, como sempre, essas regras não estão solidamente edificadas: devemos continuar enfrentando as tensões, pois estas mudam segundo a dinâmica da creche, da família e da sociedade.
Em outras experiências nas quais me envolvi e me envolvo quando identifico limites apagados, imprecisos ou opacos entre as crianças, suas famílias e seus educadores, vou logo tentando recuperar com o grupo (pais e professores) quais são os contratos coletivos, ou seja, os combinados dessas instituições. Quando isso acontece, provoco os integrantes do grupo com as seguintes perguntas: qual é a vantagem de não deixar claro para as crianças e suas famílias as regras daquelas relações? Quais as vantagens de não combinar nada? Quem ganha com o silêncio de alguns temas que se tornam tabus na instituição? Quem ganha quando famílias e professores silenciam? Quem ganha com a falta de comunicação ou com a comunicação truncada? Quem ganha com o distanciamento?
Para tentar pensar nessas (des)vantagens, retornarei ao início deste artigo e pedirei novamente ajuda ao professor Yves de La Taille (1992), que afirma que limites imprecisos - ora admitidos pelo adulto, ora rejeitados na mesma ação - podem trazer como consequência o desamparo das crianças e dos adultos, além do controle total de quem medeia essas relações (pai, mãe, diretora, professora, etc.). Para a mesma reflexão, e considerando a relação entre creche e família, poderia ainda recorrer a Cyntia Sarti e Damaris Maranhão (2009), em seu recente artigo sobre os limites imprecisos entre família e creche, quando destacam que o cenário favorece o envolvimento pessoal dos profissionais com base na compaixão e na piedade, como sentimentos que, em nome precisamente de uma "ajuda", negam a condição de sujeito de quem é ajudado, afirmando um lugar de poder de quem ajuda.
Para concluir, não identifico vantagem alguma em deixar as regras obscuras ou os limites imprecisos. Acredito que, para que se transponham limites, para que a criança conheça o mundo que a cerca, para que a família e os funcionários participem democraticamente como sujeitos de direitos dessas interações éticas, há que se combinar de fato, dando visibilidade e tendo disposição para alterar as regras em associação com todos os segmentos que frequentam as creches e pré-escolas (Chauí, 1997; DeVries, 1998).
Ana Maria Mello é supervisora
das Creches USP/Coseas Interior.
melloa@uol.com.br
As perguntas giravam em torno do senso comum: bebês de até 2 anos podem compreender regras? Até que faixa etária é preciso estabelecer regras? Como e quando flexibilizá-las? Algumas famílias descreviam eventos, narravam acontecimentos nos quais as crianças apareciam como verdadeiros tiranos e os adultos como vítimas de seus caprichos. Também ali apareciam perguntas a respeito dos limites da família e da creche: quais as funções de cada instituição? Por que as famílias colocam poucos limites? Por que as creches não deixam claro quais são as regras? Por que vale uma regra para uma família, para uma criança, mas uma diferente para outra? Quem medeia as regras de uma instituição? E como deve ser em casa?
Lembro também que o professor Yves de La Taille pediu paciência, pois precisaria defender uma ideia oposta. Ele afirmou enfaticamente que os adultos deveriam educar não para colocar limites, e sim para ajudar as crianças a transpor limites! Os adultos presentes reagiram espantados com tal afirmação. A interjeição "oh" ecoou de tal modo, que todos nós rimos em seguida. Porém, estávamos muito interessados em debater esse tema, já que em alguns episódios relatados apareceram recados implícitos, remetidos tanto à creche quanto à família, culpabilizando as duas instituições.
Nosso convidado queria dizer que, como no mundo tudo é regulado por regras, é preciso ter clareza sobre quais são os limites para que a criança possa experimentar essas regras, às vezes com a tutela, outras vezes com a supervisão dos adultos, e outras tantas sozinha, buscando construir com autonomia sua identidade, suas possibilidades de interação com o meio em que está inserida.
Lembro-me ainda que, em diferentes oportunidades, ao organizar grupos de estudos ou orientações sobre comportamentos no cuidado e na educação coletiva de crianças, procuramos identificar nos episódios apresentados quais eram os momentos do dia a dia em que esses casos apareciam com maior frequência. Identificamos que, quanto menor a criança, maior a tensão colocada no tripé higiene, nutrição e sono. Nessa oportunidade, avaliamos também que é através desse tripé que a criança tem seus primeiros contatos com o mundo social. Sabíamos que cada ação dessa natureza estava ligada a uma rede de comunicações entre a criança e o adulto, estabelecendo uma relação interpessoal. As meias e os sapatos desaparecidos ou sujos, a conservação e a organização dos objetos trazidos de casa, o modo como nos comunicávamos entre nós e com as famílias, cada novo programa e/ou planejamento, cada organização dos tempos e espaços - tudo isso nos fornecia mais condições de provocar transposição de limites.
As professoras relatavam que, ao interagir com a criança, introduziam nessas interações suas próprias emoções, ou seja, seu estado de humor, seu ânimo e suas possibilidades emocionais de se colocar no lugar do outro e de responder às necessidades do outro. Recordo que lemos sobre a importância do contato físico, particularmente para as crianças abaixo de três anos, e refletimos ser este o meio mais seguro para se construir a intimidade emocional com os pequenos, desde que o adulto tivesse capacidade para tanto.
Identificávamos muitas vezes o adulto maduro, aquele descrito por Winnicott (1975, p. 64): "O adulto maduro, de fato, toma parte na atividade de prover. Precisamos examinar as necessidades da criança, que vão mudando à medida que esta muda da dependência para a independência". Outras tantas vezes víamos os adultos competindo e esquecendo-se da responsabilidade de mediar as interações entre as crianças.
Naquelas ocasiões, vários episódios eram lembrados pelos professores, sendo destacado que a maior parte das experiências que ocorrem nesses contatos das crianças com os adultos é impregnada de sentimentos geralmente contraditórios. Muitos adultos queriam saber por que a emoção tem tanta força de controle, por que a emoção da criança costuma entrar em cena quando algo pelo qual ela anseia lhe é dado ou negado.
Aprendi durante esses anos que negociar e renegociar regras, regulamentá-las, normalizá-las e rediscuti-las é algo continuado. Deve-se considerar que esse é um dos conteúdos do trabalho de quem cuida de crianças, particularmente em uma instituição de educação infantil. Partindo desse princípio e recorrendo a Wallon, pode-se refletir sobre a possibilidade de que a criança e o adulto aprendam noções importantes nas interações, "descobrindo que tudo no mundo, inclusive pessoas, é regulado por regras" (Werebe e Nadel, 1986, p. 47). Vimos que os adultos e as crianças estabelecem entre si o significado das coisas, dos eventos que os cercam, assim como o comportamento e a forma de ser dessa criança estão sendo continuamente atribuídos, negociados e modificados.
É comum ouvirmos nas creches queixas de pais e educadores sobre as crianças com menos de seis anos: elas não dormem enquanto os pais não se recolhem, não comem se não for só macarrão, ou não brincam se não for apenas com regras estabelecidas e modificadas por elas. Nesse confronto com diferentes parceiros, a criança vai formando seu pensamento e sua afetividade. Ao mesmo tempo, vários atos infantis são acompanhados pela ansiedade ou pelo aborrecimento, resultando em sons emocionais: choro, balbucio, suspiros, gritos, falas compulsivas. Nesses momentos, ocorre um contágio rápido, quase instantâneo, dos adultos e das outras crianças.
Durante a década de 1990, preocupados em aproximar as famílias, organizamos uma série de projetos para a formação dos educadores, que foram denominados Série Carochinha. Junto com eles estudamos, analisamos sugestões, levantamos diferenças e avaliamos. Posteriormente, escrevemos folhetos e editamos vídeos educativos sobre como está organizada cada uma dessas ações na creche, quais são suas concepções e por que são defendidas. Nesses projetos, discutimos temas como mordidas, adaptação (das crianças, das famílias e dos educadores), alimentação, controle de esfíncter, sono, sexualidade, banho e brincadeiras com água, como também limites para a infância (Rossetti-Ferreira et al., 2008).
Recorto esse fragmento da história de formação continuada do grupo da Creche Carochinha porque considero que foi um bom exercício para tratar os combinados (interações compartilhadas nas quais a fala da criança e de sua família deve ser considerada e analisada sistematicamente) entre as crianças e os adultos que resultaram em construções coletivas negociadas. Vale lembrar que, como sempre, essas regras não estão solidamente edificadas: devemos continuar enfrentando as tensões, pois estas mudam segundo a dinâmica da creche, da família e da sociedade.
Em outras experiências nas quais me envolvi e me envolvo quando identifico limites apagados, imprecisos ou opacos entre as crianças, suas famílias e seus educadores, vou logo tentando recuperar com o grupo (pais e professores) quais são os contratos coletivos, ou seja, os combinados dessas instituições. Quando isso acontece, provoco os integrantes do grupo com as seguintes perguntas: qual é a vantagem de não deixar claro para as crianças e suas famílias as regras daquelas relações? Quais as vantagens de não combinar nada? Quem ganha com o silêncio de alguns temas que se tornam tabus na instituição? Quem ganha quando famílias e professores silenciam? Quem ganha com a falta de comunicação ou com a comunicação truncada? Quem ganha com o distanciamento?
Para tentar pensar nessas (des)vantagens, retornarei ao início deste artigo e pedirei novamente ajuda ao professor Yves de La Taille (1992), que afirma que limites imprecisos - ora admitidos pelo adulto, ora rejeitados na mesma ação - podem trazer como consequência o desamparo das crianças e dos adultos, além do controle total de quem medeia essas relações (pai, mãe, diretora, professora, etc.). Para a mesma reflexão, e considerando a relação entre creche e família, poderia ainda recorrer a Cyntia Sarti e Damaris Maranhão (2009), em seu recente artigo sobre os limites imprecisos entre família e creche, quando destacam que o cenário favorece o envolvimento pessoal dos profissionais com base na compaixão e na piedade, como sentimentos que, em nome precisamente de uma "ajuda", negam a condição de sujeito de quem é ajudado, afirmando um lugar de poder de quem ajuda.
Para concluir, não identifico vantagem alguma em deixar as regras obscuras ou os limites imprecisos. Acredito que, para que se transponham limites, para que a criança conheça o mundo que a cerca, para que a família e os funcionários participem democraticamente como sujeitos de direitos dessas interações éticas, há que se combinar de fato, dando visibilidade e tendo disposição para alterar as regras em associação com todos os segmentos que frequentam as creches e pré-escolas (Chauí, 1997; DeVries, 1998).
Ana Maria Mello é supervisora
das Creches USP/Coseas Interior.
melloa@uol.com.br
REFERÊNCIAS
CHAUÍ, M. Público, privado, despotismo. In: Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. DEVRIES, R.; ZAN, B. Ética na educação infantil: o ambiente sócio-moral na escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. ROSSETTI-FERREIRA, M.C. et al. Os fazeres na educação infantil. 11.ed. São Paulo: Cortez, 2008. SARTI, C.A.; MARANHÃO, D.G. A creche é o pai: instituição pública ou projeção de uma família idealizada? In: FREITAS, M.C. de; MÜLLER, F. (orgs.). A criança e a infância em perspectiva: cenários nacionais e internacionais. São Paulo: Cortez, 2009. LA TAILLE, Y. de. Construção da fronteira da intimidade: a humilhação e a vergonha na educação moral. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 82, p. 48-55, 1992. WEREBE, M.J.; NADEL, J.G. Henri Wallon. São Paulo: Ática, 1986. WINNICOTT, D. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975.
Texto publicado no Ano VIII - Nº 23 - Limites na primeira infância - Abril 2010 / Junho 2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário