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domingo, 5 de dezembro de 2010

O Brincar

O Brincar como um Território de Aprendizagem


Alexandre Paulo Loro

Além de ser uma forma gostosa de aprender, o brincar proporciona algo fundamental ao ser humano: a construção de sua independência e liberdade.

Vivemos numa cultura em que não há espaços, de modo geral, para as brincadeiras. Isso impede as crianças de expressarem a sua cultura de infância, uma vez que as brincadeiras vêm sendo percebidas sob o ponto de vista produtivo, comumente confundidas e trabalhadas como conteúdos desportivos, atualmente muito valorizados. Ao redimensionar o entendimento que se tem sobre o brincar, pode-se possibilitar ao corpo a compreensão da realidade e reaprender a se conhecer, visto que as crianças expressam em sua corporeidade e integridade um acervo sobre as mais diversas questões.
Acredito que o desenvolvimento da autonomia decorre, entre outras coisas, da possibilidade de escolher, entre várias opções, em cada situação, aquela que for julgada pelo sujeito a mais adequada. Para tanto, a criança precisa dispor de um leque amplo de alternativas para defrontar-se com as mais diversificadas situações (Freire, 2005). Na condição de professor de educação física, não posso deixar de salientar que é geralmente nessa disciplina que as crianças têm a oportunidade de brincar. Contudo, herdamos do patriarcado europeu a cultura da guerra e da luta, que nos levou à atual situação de autoritarismo, dominação e desrespeito às diversidades biológicas, esquecendo os fundamentos da condição humana que permeiam o afetivo e o lúdico: o amar e o brincar.
Busco em Maturana e Verden-Zöller (2004) subsídios para explicar que a competição é um comportamento aprendido pelas crianças de acordo com a cultura em que elas crescem: na primeira infância, a criança vive na intimidade da coexistência social com sua mãe - através do encontro corporal íntimo, desenvolve-se um ser social bem- integrado; na transição para a adolescência, a criança tem de adotar um modo de vida que nega tudo o que até então aprendeu, como se tivesse vivido num mundo de mentiras - ela aprende a competir. A falta de respeito, de colaboração e de alteridade impossibilita a criação de um mundo de aceitação mútua. A qualidade lúdica, a espontaneidade, a capacidade de desenvolver satisfação pessoal precisam ser mais enfatizadas, o que requer liberdade. As aulas que primam pela competitividade perdem esse valor.
Para Maturana e Rezepka (2002), os valores não se ensinam, pois precisam ser vivenciados com o outro, especialmente no ambiente escolar - momento oportuno para viver a coletividade, sem discriminações, num caráter aberto e dinâmico para a construção de significados. Ao compartilhar significados e sentidos, oportuniza-se a construção do conhecimento. Portanto, uma das principais maneiras de as crianças aprenderem é brincando. A escola é um reduto onde as crianças ainda podem brincar num ambiente afetivo de acolhimento, no qual reina a liberdade de criação, que facilita a aprendizagem. Percebe-se, no entanto, que é um território ainda pouco freqüentado, desconsiderado por muitos, por ser visto como algo inútil e por se afirmar que, com o brincar, nada se produz.
Não se percebe que o brincar nos acompanha, assim como o amor, sendo um refúgio onde se abrigam os fundamentos do humano durante as crises da racionalidade. Desperdiçamos, assim, o potencial imaginativo da brincadeira com a qual a criança está envolvida e, com ele, um trabalho educativo capaz de promover diferentes manifestações de corporeidade, singularmente criadoras. A preocupação em manter os alunos ocupados com um número excessivo de atividades e com o processo de disciplinarização do comportamento empobrece as oportunidades que se apresentam propícias para uma "biologia do amor".
O brincar está presente na vida e na educação da humanidade desde os tempos mais remotos. É impossível não nos rendermos às evidências de sua fundamental importância na construção do conhecimento e no desenvolvimento integral das crianças. Trata-se, portanto, de uma atividade espontânea e legítima da criança. Quando vemos uma criança brincando, estamos certos de estar observando um ser feliz. É uma das características marcantes da infância, para não dizer natural e normal, a ponto de ser difícil presenciar uma criança livre que não esteja brincando, seja qual for o lugar.
Acabamos por não mais prestar a devida atenção e dar a importância merecida ao brincar. Não é estranho entrar numa escola e perceber que as crianças permanecem estáticas durante horas em classes escolares, tendo o direito de brincar negado, por este ser visto como um passatempo inconseqüente, como se não fosse possível brincar e aprender simultaneamente. Desde os primeiros instantes isso é evidente ao se afirmar que a escola não é lugar de barulho. Faz tempo que a escola herdou da sociedade um legado de aprendizagens fechadas em quatro paredes, desprestigiando o referido contexto como um lugar legítimo de formação.
As crianças são muito espontâneas; porém, ao chegar à escola, precisam adaptar-se. Recebem inúmeras informações tidas como necessárias à sua "boa formação" e, em muitos casos, não há a preocupação com seu conhecimento prévio, sendo sua cultura reprimida pelas práticas educativas. Ao serem excessivamente monitoradas, as atividades impedem as crianças de se dedicar às relações amistosas. Não há sequer tempo para a criação de suas próprias brincadeiras, tampouco de seus próprios brinquedos, valendo-se da produção artesanal.
As possibilidades de brincadeiras são inesgotáveis e muito maiores do que podemos imaginar. No entanto, quando o aprender desvincula-se do brincar, acaba por tornar-se uma obrigação - um processo nem sempre agradável. Dizer que a criança deve brincar parece trivial, mas não o é. O brincar tem sido desdenhado com o passar do tempo. Não se trata de uma atividade artificial com finalidades instrucionais e, quando isso acontece, o descaracterizamos. Conseqüentemente, furta-se a fantasia e nega-se o ser criança.
O brincar é algo constituinte da existência infantil e a maneira que a criança tem de lidar com a realidade. Ao brincar, as crianças constroem representações tão reais quanto é o trabalho intelectual para os docentes. Brincar faz parte de sua vida de forma intrínseca, independentemente da interferência dos adultos. Assim, a escola é um dos poucos lugares onde a criança ainda pode vir a ter espaço para construir o próprio pensamento e dominar suas ações de maneira espontânea. Além disso, brincar tem um caráter educativo por si só. No entanto, a característica de "gratuidade fundamental" é precisamente o que mais o faz desacreditar (Caillois, 1990). Logo, seria no mínimo interessante discutir com maior afinco as brincadeiras que os docentes desenvolvem e como e quais são as brincadeiras que as crianças ensejam. Penso ser uma injustiça e uma negligência para com as crianças desvirtuar ou privar precocemente esse aspecto na infância. Afinal, elas são protagonistas, capazes de (re)criar cultura, gerar conhecimento e não ser apenas suas receptoras.
O ambiente humano vem sendo bruscamente deteriorado, aspecto que nos adverte sobre a necessidade de se tomar consciência da importância das circunstâncias criadas nos ambientes de aprendizagem e da necessidade de sua revitalização (Barcelos, 2006). É essencial criar ambientes de convivência, diálogo e amorosidade, onde prevaleça o prazer em aprender. Os adultos freqüentemente têm dificuldades em se envolver e ouvir as crianças. Ao subestimá-las e silenciá-las, perde-se o sentido das coisas simples e vão-se com elas também as coisas importantes. Dar condições às crianças de se expressar, ouvindo e aceitando o que dizem, é um exercício que possibilita a sua compreensão − e aquele que aprende a compreender as crianças abre-se para todos.
Por meio das brincadeiras, as crianças tendem a manifestar o que dificilmente expressariam por meio de palavras; elas procuram interpretar/sentir determinadas ações humanas e aprendem vivendo algo sempre novo, mas não distante da realidade. O brincar é um espaço cujo aspecto de simulação e imaginação oferece uma oportunidade educativa única, ou seja, é uma situação privilegiada de aprendizagem espontânea, se não a forma mais completa de aprender e educar. Acredito na importância do brincar como um território de aprendizagem. Além de ser uma forma gostosa de aprender, proporciona algo fundamental ao ser humano: a construção de sua independência e liberdade.


Alexandre Paulo Loro é mestre em Educação e professor da rede pública de ensino de São Miguel do Oeste (SC) e Barra Bonita (SC).
alexandrepauloloro@yahoo.com.br

REFERÊNCIAS

BARCELOS, V. Por uma ecologia da aprendizagem humana: o amor como princípio epistemológico em Humberto Romesín Maturana. Revista de Educação/PUCRS, Porto Alegre, ano XXIX, v. 3, n. 60, p. 581-597, set./dez. 2006.

CAILLOIS, R. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia, 1990.

FREIRE, J.B. O jogo: entre o riso e o choro. Campinas: Autores Associados, 2005.

MATURANA, H.; REZEPKA, S.N. Formação humana e capacitação. Petrópolis: Vozes, 2002.

MATURANA, H.; VERDEN-ZÖLLER, G. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano do patriarcado europeu à democracia. São Paulo: Palas Athena, 2004.

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